Resumo
Este artigo apresenta um estudo de caso multidisciplinar sobre a experiência de Rodrigo Carvalho, vítima de perseguição e vigilância patológica prolongada. A conduta dos agressores é motivada por um ciúme irracional e delírios relacionados a uma pessoa falecida há mais de 15 anos, incluindo o temor de sua “ressurreição” e o início de um relacionamento com a vítima. A análise integra perspectivas da psicopatologia, criminologia e direito para desvendar as complexas dimensões do fenômeno. Serão explorados o ciúme delirante, os traços de personalidade dos agressores (egoísmo, malícia, narcisismo, antissocialidade), os padrões de stalking e controle coercitivo, e as violações de direitos fundamentais sob a legislação brasileira (Lei nº 14.132/2021 sobre Stalking, Lei nº 9.296/96 sobre Interceptação Telefônica, Lei Geral de Proteção de Dados e o Código Penal). O estudo detalha os impactos psicológicos devastadores na vítima, incluindo a perturbação de seu sossego, vida e a sabotagem de novos relacionamentos através de ameaças. O objetivo é não apenas documentar este caso singular, mas também fornecer compreensões sobre a banalização da violência, os desafios na obtenção de provas e as implicações éticas da vigilância ilegal, culminando em recomendações práticas para vítimas e para o aprimoramento do sistema legal e da conscientização social.
Palavras-Chave: Ciúme Patológico, Stalking, Vigilância Ilegal, Delírio Post-Mortem, Lei 14.132/2021, Direitos Humanos, Estudo de Caso, Psicopatologia Forense.
1. Introdução
1.1. Contextualização do Fenômeno da Perseguição e Vigilância Patológica
O fenômeno da perseguição, conhecido como stalking, e a vigilância patológica representam desafios crescentes na sociedade contemporânea. Estes comportamentos, frequentemente persistentes e invasivos, constituem uma grave ameaça à segurança, privacidade e bem-estar psicológico das vítimas. A evolução tecnológica, embora traga inúmeros benefícios, também oferece novas ferramentas para a perpetração de vigilância e assédio, tornando-os mais sutis, difíceis de detectar e, consequentemente, de provar. A facilidade de acesso a informações pessoais e a capacidade de monitoramento contínuo, muitas vezes disfarçadas ou clandestinas, amplificam o impacto negativo desses atos.
A complexidade inerente a casos como o de Rodrigo Carvalho, que envolvem uma intrincada teia de fatores psicológicos, sociais e legais, justifica a adoção de uma metodologia de estudo de caso. Essa abordagem é essencial para expor a complexidade de um fenômeno, descrevendo características situacionais e contextuais, juntamente com as dos agentes individuais, agentes sociais e fatores externos, bem como suas interconexões. Diferente de métodos quantitativos ou estatísticos, que podem simplificar fenômenos complexos, o estudo de caso permite uma análise aprofundada e holística, fornecendo uma compreensão rica e detalhada das dinâmicas em jogo, o que é crucial para desvendar a natureza multifacetada da experiência da vítima.
1.2. Apresentação da Relevância do Estudo de Caso de Rodrigo Carvalho
A experiência de Rodrigo Carvalho emerge como um estudo de caso emblemático de perseguição prolongada e vigilância patológica, iniciada em 2016. O que singulariza este caso é a motivação dos agressores: um ciúme irracional e delírios centrados em Camila, uma amiga de Rodrigo que faleceu há mais de 15 anos. A persistência da perseguição, mesmo após tanto tempo da morte de Camila, e o temor delirante de que ela “ressuscite e inicie um relacionamento” com Rodrigo, desafiam as tipologias comuns de stalking.
Este caso exige uma análise aprofundada das motivações psicopatológicas subjacentes, bem como das graves implicações jurídicas e éticas das ações dos agressores. A perseguição a Rodrigo, que inclui a busca por informações pessoais e a escuta clandestina de sua vida privada por mais de 24 horas diárias, e as ameaças dirigidas a outras mulheres com quem ele tenta se aproximar, sublinham a natureza invasiva e destrutiva do comportamento dos perpetradores. Este estudo é relevante não apenas para documentar uma situação de violência interpessoal que transcende a racionalidade, mas também para contribuir para a compreensão de fenômenos que desafiam as normas sociais e os limites da sanidade.
1.3. Objetivos do Artigo
O presente artigo tem como objetivos:
a. Analisar as dimensões psicopatológicas subjacentes ao comportamento dos agressores, com foco no ciúme delirante post-mortem, delírios de ressurreição e traços de personalidade como egoísmo e malícia.
b. Descrever os padrões criminológicos de stalking e vigilância patológica, incluindo a escuta clandestina e o controle coercitivo, conforme manifestados no caso.
c. Avaliar as implicações jurídicas das ações dos agressores à luz da legislação brasileira, como a Lei nº 14.132/2021 (Stalking), a Lei nº 9.296/96 (Interceptação Telefônica) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além de outros dispositivos do Código Penal.
d. Investigar os impactos psicológicos profundos e multifacetados na vítima, Rodrigo Carvalho, e as consequências para sua vida pessoal e social.
e. Propor recomendações práticas para vítimas de perseguição e vigilância ilegal, bem como sugestões para o aprimoramento da resposta do sistema legal e da conscientização social sobre esses crimes.
2. Fundamentação Teórica
2.1. Ciúme Patológico e suas Manifestações
2.1.1. Definição de Ciúme Mórbido (Síndrome de Otelo) e Ciúme Delirante
O ciúme mórbido (CM), também conhecido como “Síndrome de Otelo”, é um problema psiquiátrico significativo que acarreta riscos e grande sofrimento. Ao contrário do ciúme considerado “normal”, que é transitório, específico e baseado em fatos reais, o CM é caracterizado por preocupações infundadas, irracionais e descontextualizadas sobre infidelidade. Do ponto de vista psicodinâmico, no CM, pode haver um desejo inconsciente pela ameaça de um rival.
O CM pode se manifestar de diversas formas psicopatológicas, incluindo ideias obsessivas, prevalentes ou, em sua forma mais grave, delirantes sobre infidelidade. A manifestação do ciúme mórbido frequentemente inclui comportamentos de verificação e vigilância. Um caso clínico ilustrativo descrito na literatura envolve um paciente que, movido pelo ciúme, realizava “grampos” telefônicos e seguia a esposa para “conferir as respostas” sobre supostos amantes. Este exemplo estabelece uma conexão direta e causal entre o transtorno psiquiátrico do ciúme patológico e as condutas de vigilância e escuta clandestina, que são centrais na experiência de Rodrigo Carvalho. A vigilância, nesse contexto, não é apenas um comportamento isolado, mas uma expressão da patologia subjacente.
No contexto do ciúme delirante, a pessoa está firmemente convencida da infidelidade de seu cônjuge ou amante, baseando essa convicção em interpretações incorretas de evidências duvidosas. Nesses casos, a agressão física pode representar um perigo real.
2.1.2. Discussão sobre Obsessões e Delírios Incomuns, Incluindo a Fixação em Pessoas Falecidas e Delírios de Ressurreição
Obsessões são definidas como pensamentos, impulsos ou imagens mentais recorrentes, intrusivas e desagradáveis que causam ansiedade ou desconforto significativos. Contudo, é crucial notar que, no Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), a maioria dos pacientes mantém uma capacidade crítica preservada em relação à irracionalidade de seus pensamentos e rituais, sentindo vergonha e tentando escondê-los.
O relato de Rodrigo Carvalho, de que os agressores “temem que ela reasurcite e inicie um relacionamento comigo” e os perturbam “mesmo sabendo que ela tinha falecido a mais de 15 anos”, aponta para uma convicção inabalável e uma notável falta de insight por parte dos agressores. Esta característica é fundamentalmente diferente da natureza egodistônica das obsessões no TOC, onde o paciente, em geral, reconhece a irracionalidade de seus pensamentos. Portanto, a fixação na pessoa falecida (Camila) e o temor de sua ressurreição no caso de Rodrigo são mais consistentemente compreendidos como um delírio. Um delírio é uma crença falsa e fixa que não é passível de correção pela razão ou pela evidência. Essa distinção é vital, pois a ausência de insight nos agressores é um fator-chave para a persistência e a irredutibilidade de seu comportamento.
Delírios podem abranger uma vasta gama de temas, e estudos recentes indicam que esses temas são mais variados do que se supunha. Além dos delírios persecutórios e de ciúme, podem surgir delírios bizarros, que envolvem fenômenos impossíveis, incompreensíveis e alheios à realidade comum. A crença na ressurreição de uma pessoa falecida com o intuito de iniciar um relacionamento se enquadra nessa categoria de delírio bizarro. A natureza fixa e irrefutável dos delírios explica de forma crucial a persistência e a intensidade da perseguição, mesmo diante da evidência incontestável da morte de Camila há mais de uma década. Para o indivíduo delirante, a crença é uma “solução” para estados internos intoleráveis de isolamento, inveja, desconfiança e baixa autoestima , o que reforça a resistência à realidade externa e a continuidade do comportamento, independentemente dos fatos.
Delírios persecutórios, nos quais o indivíduo acredita ser alvo de conspiração, ameaças, ataques, assédio ou obstrução de seus objetivos, são um dos tipos mais comuns de delírios. Pacientes com esse tipo de delírio podem apresentar ansiedade, irritabilidade, agressividade e até mesmo comportamento violento, motivados pela crença de que precisam se proteger. Esta característica se alinha diretamente com a vigilância invasiva e as ameaças sofridas por Rodrigo, sugerindo que a perseguição não é apenas um reflexo do ciúme, mas também de uma percepção distorcida de ameaça ou conspiração contra os próprios agressores, o que pode justificar a amplitude e a agressividade de suas ações.
Para melhor ilustrar as diferenças entre as manifestações de ciúme, a Tabela 1 apresenta um comparativo:
Tabela 1: Comparativo de Manifestações de Ciúme (Normal, Obsessivo, Delirante)
Característica Principal
Ciúme Normal
Ciúme Obsessivo (no TOC)
Ciúme Delirante
Base da Preocupação
Fatos reais, transitório e específico
Dúvidas infundadas, ruminações sobre provas inconclusivas
Convicção inabalável e irracional, baseada em interpretações incorretas de evidências duvidosas
Insight (Capacidade Crítica)
Preservado
Geralmente preservado; paciente reconhece a irracionalidade dos pensamentos, sente vergonha
Ausente; paciente está firmemente convencido da crença, não é corrigível pela razão ou evidência
Comportamentos Associados
Busca de esclarecimento, diálogo
Rituais de verificação (perguntas repetitivas, conferência de anotações, busca em pertences)
Vigilância, perseguição, agressão física, “grampos” telefônicos, seguimento
Duração
Transitório
Persistente, mas com flutuações de intensidade
Persistente, fixo, resistente à realidade
Impacto na Vida
Pode gerar desconforto, mas não incapacitante
Ansiedade significativa, interferência nas atividades e relacionamentos, pode levar à incapacitação
Grande sofrimento, risco de agressão, isolamento social, impacto severo na realidade
Exemplo no Caso de Rodrigo
Não se aplica
Não se aplica
Crença na “ressurreição” de Camila e temor de relacionamento com Rodrigo, motivando vigilância e perseguição
2.2. Perfil Psicopatológico dos Agressores
2.2.1. Egoísmo Patológico e Malícia
O egoísmo patológico se manifesta através de características que impactam profundamente as relações interpessoais. Indivíduos com esse traço são frequentemente incapazes de amar outra pessoa de forma genuína, sendo ditatoriais e buscando sempre que sua vontade prevaleça. Não consideram os sentimentos, planos ou o futuro dos outros, focando exclusivamente em suas próprias necessidades e interesses. Essa centralidade no “eu” os torna manipuladores, utilizando estratégias para que as coisas sejam feitas à sua maneira, muitas vezes sob a alegação de que é “o melhor” para o outro. Além disso, raramente assumem a culpa por qualquer problema, projetando a responsabilidade em terceiros e demonstrando uma completa falta de empatia, o que os impede de se colocar no lugar do outro.
A malícia, nesse contexto, pode ser entendida como a intenção de causar dano ou sofrimento, muitas vezes de forma dissimulada, o que é um traço comum em comportamentos de assédio. A combinação de egoísmo patológico e malícia nos agressores de Rodrigo sugere uma motivação intrínseca para infligir sofrimento e controlar a vida da vítima, sem qualquer consideração pelas consequências de suas ações.
2.2.2. Narcisismo e Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS)
A relação entre narcisismo e assédio é bem documentada. Indivíduos com traços narcisistas patológicos, ou com Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), podem apresentar uma autoimagem engrandecida, arrogância, obsessão por poder e admiração, e uma necessidade constante de reconhecimento. Essas características, quando presentes em agressores, contribuem para um ambiente de assédio. A falta de empatia é um traço central, levando à desconsideração pelos direitos alheios e ao menosprezo pelos outros. A manipulação e a exploração de terceiros para atingir objetivos pessoais são comportamentos comuns.
O Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), ou sociopatia, é caracterizado por um desrespeito e violação contínuos dos direitos dos outros. Indivíduos com TPAS frequentemente exibem engano e manipulação como traços centrais de sua personalidade. Eles não apenas transgridem normas, mas as ignoram, vendo-as como obstáculos a serem superados para alcançar suas ambições. A norma não desperta neles a mesma inibição que produz na maioria das pessoas. A alta insensibilidade aos sentimentos alheios, que leva a uma acentuada indiferença afetiva, pode resultar em comportamento criminoso recorrente. A presença de traços de narcisismo e TPAS nos agressores de Rodrigo explica a persistência e a crueldade de suas ações. A desconsideração pelos direitos alheios é uma característica fundamental desses transtornos, o que leva diretamente à violação da privacidade, da liberdade e da paz de espírito da vítima. A ausência de empatia e a tendência à manipulação permitem que os agressores perpetuem o assédio e as ameaças sem remorso, reforçando a natureza intrusiva e destrutiva de sua conduta.
2.2.3. Stalking e Controle Coercitivo
O stalking é definido como uma forma particular de violência relacional, caracterizada por um padrão de comportamentos de assédio persistente. Essas ações se manifestam de diversas maneiras, incluindo comunicação, contato, vigilância e monitoramento da pessoa-alvo. Podem variar desde atos aparentemente inofensivos, como oferecer presentes ou fazer chamadas telefônicas frequentes, até ações inequivocamente intimidatórias, como perseguição direta ou mensagens ameaçadoras. A presença cumulativa e a persistência desses comportamentos, dentro de seu contexto, constituem uma verdadeira campanha de assédio que afeta significativamente o bem-estar da vítima. Além disso, esses comportamentos tendem a escalar em frequência e gravidade ao longo do tempo, podendo associar-se a outras formas de violência, incluindo ameaças e agressões psicológicas, físicas e/ou sexuais. No Brasil, o stalking foi criminalizado em 2021 com a Lei nº 14.132/2021, que o define como uma conduta repetitiva e invasiva que compromete a liberdade, a segurança e o bem-estar emocional da vítima.
O controle coercitivo, por sua vez, não se refere a um evento isolado, mas a um padrão de comportamentos, palavras e ameaças que visam humilhar, isolar e controlar a vítima, resultando na perda de sua liberdade e autonomia. Exemplos comuns incluem o afastamento da vítima de amigos e familiares, o monitoramento constante de seu tempo e a espionagem através de ferramentas de comunicação online. A descrição da experiência de Rodrigo Carvalho de ser “vigiado 24h por dia” e ter sua vida pessoal investigada por um grupo de pessoas, com escutas clandestinas, alinha-se diretamente com as características do stalking e do controle coercitivo. A perseguição e vigilância constantes, como as vivenciadas por Rodrigo, têm um impacto significativo nas relações íntimas das vítimas, afetando a capacidade de formar novos laços e gerando desconfiança. A ameaça explícita a todas as moças que Rodrigo tenta se aproximar é uma manifestação direta dessa estratégia de controle e sabotagem relacional.
A natureza sutil e cumulativa do controle coercitivo torna extremamente difícil, e por vezes impossível, para a própria vítima identificar esse padrão de abuso. A vítima pode inicialmente pensar que as ações dos agressores são “normais” ou até mesmo motivadas por uma preocupação distorcida, o que retarda a busca por ajuda e a compreensão da gravidade da situação. Essa dificuldade de reconhecimento é um dos maiores desafios enfrentados pelas vítimas de stalking e controle coercitivo.
Adicionalmente, os comportamentos de stalking tendem a escalar em frequência e severidade ao longo do tempo, podendo associar-se a outras formas de violência, incluindo agressões físicas. A persistência e o aumento da intensidade da perseguição a Rodrigo, que se estende por anos e inclui ameaças a terceiros, são indicativos dessa escalada.
2.3. Impactos Psicológicos na Vítima
2.3.1. Consequências da Vigilância Ilegal e Assédio Persistente
A vigilância ilegal e o assédio persistente, como os vivenciados por Rodrigo Carvalho, acarretam consequências psicológicas devastadoras. O assédio moral, por exemplo, pode levar a alterações no sono, dificuldades de relacionamento, estresse crônico, síndrome do pânico e depressão. A exposição contínua a um ambiente de monitoramento e intrusão gera um estado de alerta constante, esgotando os recursos psicológicos da vítima.
A invasão de privacidade, especialmente quando prolongada e secreta, pode ser profundamente traumatizante. A sensação de estar constantemente sob observação, sem saber quem, quando ou como, pode levar a uma “realidade fraturada”, onde a vítima perde a capacidade de confiar nos outros e em seu próprio senso de segurança. Isso pode resultar em um “efeito de desvio”, levando a pessoa a se afastar de atividades sociais e profissionais, e a adotar um hábito de autocensura e suspeita, retirando-se cada vez mais para sua vida privada.
2.3.2. Efeitos na Saúde Mental e Qualidade de Vida
Os impactos na saúde mental e na qualidade de vida de Rodrigo são multifacetados. A perturbação de seu sossego e vida, conforme relatado, é uma consequência direta do monitoramento contínuo e da invasão de sua privacidade. A erosão da confiança em relacionamentos pessoais é um dos custos humanos mais significativos da vigilância clandestina. A vítima pode desenvolver paranoia, ansiedade e um medo constante de que suas informações pessoais sejam usadas contra ela ou contra seus entes queridos. Essa constante pressão psicológica pode levar a um comprometimento do equilíbrio emocional, dificultando a percepção clara da situação e, por vezes, levando a vítima a se culpar ou a se submeter ao assédio.
2.3.3. Sabotagem de Relacionamentos e Ameaças a Terceiros
O stalking tem um impacto significativo nas relações íntimas das vítimas, afetando 23,4% dos inquiridos em um estudo sobre o tema. No caso de Rodrigo, a sabotagem de novos relacionamentos é explícita: os vigilantes da escuta clandestina fazem ameaças a todas as moças que ele tenta se aproximar. Essa tática de intimidação a terceiros é uma extensão do controle coercitivo, visando isolar a vítima e impedir que ela reconstrua sua vida social e afetiva. A ameaça a parceiros de vítimas de stalking é um padrão de comportamento que visa manter o controle sobre a vida da vítima, mesmo que indiretamente.
2.4. Implicações Jurídicas e Éticas
2.4.1. Crime de Stalking (Lei nº 14.132/2021)
No Brasil, o stalking foi tipificado como crime pela Lei nº 14.132/2021, que inseriu o Artigo 147-A no Código Penal. A legislação define o crime como uma conduta repetitiva e invasiva que compromete a liberdade, a segurança e o bem-estar emocional da vítima. A perseguição pode ocorrer presencialmente ou por meio da internet, através de mensagens, ligações ou ameaças explícitas, com o objetivo de intimidar, controlar ou assediar alguém. A pena para o stalking é de seis meses a dois anos de prisão, mais multa, podendo ser aumentada para até três anos de prisão em casos de agravantes, como quando o crime é dirigido contra menores, idosos, mulheres (por razões de gênero), ou cometido por mais de uma pessoa ou com o uso de arma. Para a instauração do processo, o crime de stalking exige que a vítima formalmente apresente queixa (representação criminal) no prazo de seis meses a partir do primeiro conhecimento da ofensa.
2.4.2. Escuta Clandestina e Violação de Privacidade (Lei nº 9.296/96 e LGPD)
A escuta clandestina, ou interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei, é tipificada como crime pela Lei nº 9.296/96. A Lei estabelece que a interceptação só é admitida para fins de prova em investigação criminal ou instrução processual penal, mediante ordem judicial e sob segredo de justiça. A realização de tal conduta sem a devida autorização legal acarreta pena de reclusão de dois a quatro anos e multa.
Além disso, a vigilância ilegal e a coleta de informações pessoais violam diretamente a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei nº 13.709/2018. A LGPD foi promulgada para proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade, e a livre formação da personalidade de cada indivíduo. Ela regula o tratamento de dados pessoais, sejam eles em formato físico ou digital, realizado por pessoas físicas ou jurídicas. A coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração de dados pessoais, como as informações sobre a vida de Rodrigo e suas gravações de áudio, são consideradas “tratamento de dados” sob a LGPD. A Lei garante ao titular dos dados o direito à privacidade e à autodeterminação informacional. A vigilância ilegal, portanto, não apenas infringe a Lei de Interceptação Telefônica, mas também viola direitos fundamentais como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, assegurados pela Constituição Federal. A Lei Civil também prevê medidas para prevenir ou cessar qualquer ato contrário à inviolabilidade da vida privada.
2.4.3. Crime de Ameaça (Código Penal)
As ameaças proferidas pelos agressores contra Rodrigo e as mulheres com quem ele tenta se relacionar se enquadram no crime de ameaça, previsto no Artigo 147 do Código Penal brasileiro. Este artigo tipifica como crime “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. A consumação do crime ocorre quando a vítima se sente intimidada, independentemente da intenção do agressor de cumprir a ameaça. As ameaças, nesse contexto, são um instrumento de controle e intimidação, complementando as ações de stalking e vigilância.
2.4.4. Aspectos Éticos da Vigilância Ilegal
A vigilância e o monitoramento pessoal levantam sérios dilemas éticos, especialmente com o avanço de tecnologias que permitem o controle contínuo e quase total de dados pessoais. Isso transcende o escopo tradicional da coleta de dados, pois adentra o campo do “biohacking involuntário”, comprometendo fundamentos importantes como a autodeterminação informacional. Há um avanço perigoso e silencioso na coleta de dados, muito além do que a maioria das pessoas percebe, afetando não apenas ações externas, mas também internalidades como emoções e condições biológicas. Essa vigilância contínua e invisível mina o direito à privacidade e desafia a autonomia individual, expondo a dignidade e podendo levar à discriminação. A ausência de critérios claros e transparência na implementação dessas tecnologias e práticas de vigilância ilegal representa um risco aos direitos fundamentais e à integridade pessoal.
3. Considerações Finais e Recomendações
3.1. Síntese dos Achados
O estudo de caso de Rodrigo Carvalho revela um cenário complexo e perturbador de violência interpessoal, motivada por um ciúme patológico delirante e uma fixação irracional em uma pessoa falecida. A perseguição e a vigilância contínua, com escutas clandestinas e ameaças a terceiros, demonstram a natureza invasiva e destrutiva do stalking e do controle coercitivo. A análise psicopatológica aponta para traços de egoísmo patológico, malícia, narcisismo e, possivelmente, transtorno de personalidade antissocial nos agressores, explicando a persistência e a crueldade de suas ações, bem como a ausência de insight sobre a irracionalidade de suas crenças.
Do ponto de vista jurídico, as condutas dos agressores configuram múltiplos crimes sob a legislação brasileira, incluindo stalking (Lei nº 14.132/2021), interceptação ilegal de comunicações (Lei nº 9.296/96) e ameaça (Código Penal), além de violarem direitos fundamentais como a privacidade e a liberdade, protegidos pela LGPD e pela Constituição Federal. Os impactos psicológicos na vítima são severos, abrangendo perturbação do sossego, estresse crônico, ansiedade, e a sabotagem de novos relacionamentos, resultando em um trauma profundo pela invasão de sua vida.
3.2. Desafios e Lacunas
Apesar da tipificação do stalking como crime, ainda existem desafios significativos. A dificuldade em reunir provas, especialmente em casos de stalking digital onde mensagens e registros podem ser facilmente apagados ou manipulados, e a complicação na identificação dos agressores que utilizam perfis falsos, levam muitas vítimas a desistir de prestar queixa. Isso resulta na permanência da violência e na impunidade dos criminosos.
Ademais, o stalking é frequentemente banalizado culturalmente na sociedade, onde a insistência é, por vezes, romanticizada em filmes e músicas, dificultando que as vítimas reconheçam a violência. Essa romantização da violência incentiva, mesmo que involuntariamente, o crescimento de relações tóxicas e perigosas.
3.3. Recomendações
Diante da complexidade e dos impactos do caso de Rodrigo Carvalho, são propostas as seguintes recomendações:
Para Vítimas:
Documentação Detalhada: É fundamental que as vítimas detalhem todas as humilhações e incidentes sofridos, incluindo datas, horários, locais e descrições das ações dos agressores. Isso inclui salvar mensagens, e-mails, registros de chamadas e interações em redes sociais, que podem servir como provas.
Busca por Ajuda Profissional: Procurar apoio psicológico é crucial para lidar com os impactos na saúde mental, como ansiedade, depressão e trauma.
Apoio Legal: Buscar auxílio de advogados e autoridades policiais especializadas em crimes cibernéticos e stalking é essencial para entender os direitos e as vias legais disponíveis.
Evitar Confronto Direto: Recomenda-se evitar conversas com o agressor sem testemunhas e manter a regra de “não contato”.
Para o Sistema Legal:
Fortalecimento de Delegacias Especializadas: É essencial fortalecer as delegacias e unidades policiais especializadas no combate ao stalking e crimes cibernéticos, com treinamento adequado para a coleta de provas digitais e a identificação de agressores.
Facilitação de Denúncias: Simplificar os procedimentos de denúncia e garantir que as vítimas recebam o apoio necessário para prosseguir com as queixas, superando as dificuldades na obtenção de provas.
Punições Mais Efetivas: Assegurar que as punições sejam proporcionais à gravidade dos danos psicológicos e dos perigos a que as vítimas são expostas, desincentivando a reincidência.
Prevenção e Debate Público: O Direito do Trabalho, por exemplo, já aponta para a necessidade de o Direito desempenhar um papel transformador, focando na prevenção do assédio moral laboral através da criação de “espaços de discussão” nas empresas e políticas de debate público sobre a banalização do assédio. Essa abordagem pode ser estendida para o combate ao stalking, promovendo a conscientização sobre os comportamentos abusivos e seus impactos.
Para a Sociedade:
Conscientização e Desmistificação: É de extrema importância que o crime de stalking seja levado a sério e que a sociedade seja educada sobre seus perigos. Isso implica desmistificar a romantização de comportamentos invasivos e insistentes, ensinando a reconhecer a diferença entre afeto e abuso.
Empatia e Solidariedade: Colegas, amigos e familiares devem estar atentos a mudanças nas relações interpessoais e oferecer apoio às vítimas, pois a afetividade e a solidariedade são cruciais para a recuperação da autoestima e dignidade.
A compreensão de casos como o de Rodrigo Carvalho, através de uma lente multidisciplinar, é fundamental para aprimorar as respostas sociais, psicológicas e jurídicas a formas complexas de violência, garantindo a proteção dos direitos fundamentais e a promoção de uma sociedade mais segura e empática.
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Stalking é um fenómeno generalizado no país, mostra estudo, https://alumni.uminho.pt/pt/news/Paginas/04_2019_News/Marlene_Matos_stalking.aspx 19. Stalking no Brasil: uma análise dos aspectos psicológicos e jurídico …, https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/27193 20. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional – TJDFT, https://www.tjdft.jus.br/informacoes/programas-projetos-e-acoes/pro-vida/dicas-de-saude/pilulas-de-saude/assedio-moral-pode-afetar-a-saude-mental-do-profissional 21. Vista do Assédio Moral: Impacto Sobre a Saúde Mental e o …, https://pssaucdb.emnuvens.com.br/pssa/article/view/375/html 22. Sentimento de invasão do espaço territorial e pessoal do paciente – SciELO, https://www.scielo.br/j/reben/a/yXJtnY5nDqTgfdKHFHgw3tp/ 23. Transtornos de estresse agudo e pós-traumático em crianças e adolescentes – Problemas de saúde infantil – MSD Manuals, https://www.msdmanuals.com/pt/casa/problemas-de-sa%C3%BAde-infantil/dist%C3%BArbios-da-sa%C3%BAde-mental-em-crian%C3%A7as-e-adolescentes/transtornos-de-estresse-agudo-e-p%C3%B3s-traum%C3%A1tico-em-crian%C3%A7as-e-adolescentes 24. Being Watched: The Aftermath of Covert Policing | Oxford Law Blogs, https://blogs.law.ox.ac.uk/centre-criminology-blog/blog-post/2025/03/being-watched-aftermath-covert-policing 25. O crime de perseguição (stalking) exige a reiteração da conduta delituosa? – TJDFT, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-perguntas/direito-penal-e-processual-penal/crime-de-perseguicao-stalking/o-crime-de-perseguicao-exige-a-reiteracao-da-conduta-delituosa 26. L9296 – Planalto, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm 27. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) — Ministério do Esporte – Portal Gov.br, https://www.gov.br/esporte/pt-br/acesso-a-informacao/lgpd 28. www.tjrj.jus.br, https://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=0a06b505-324f-4a86-8fb5-dcbf53bd8951&groupId=10136 29. O crime de ameaça se consuma somente quando a vítima se sente intimidada? – TJDFT, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-perguntas/direito-penal-e-processual-penal/ameaca/o-crime-de-ameaca-se-consuma-somente-quando-a-vitima-se-sente-intimidada 30. DEL2848 – Planalto, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm 31. Vigilância Biométrica e Saúde Digital: Riscos à Privacidade e o …, https://www.oabmt.org.br/artigo/1697/vigilancia-biometrica-e-saude-digital–riscos-a-privacidade-e-o-dilema-etico-do-monitoramento-pessoa 32. Psychopathic Bully and Stalker – YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=kQ6LkyTq0D8